sábado, 28 de dezembro de 2013

A EPOPEIA VASCAÍNA: SÃO JANUÁRIO!

O Vasco não tinha quase nada. A colônia se mexeu e fez o maior estádio do Continente.

 


O Stadium Vasco da Gama, conhecido popularmente como Estádio de São Januário, está completando 86 anos, neste dia 21 de abril de 2013.

   Sua história, indelevelmente ligada às superações vascaínas, foi marcada pela luta contra o preconceito e a intolerância que mesmo nos dias de hoje permeiam a sociedade. Somente o torcedor do Vasco sabe como enfrentá-las: com coragem, galhardia, e a dose certa de arrogância.

   Em homenagem ao aniversário de seu estádio, resgatamos para a memória vascaína a brilhante reportagem realizada a quase 40 anos pelo jornalista Maurício Azêdo, que registrou a entrevista de Pascoal, um dos líderes dos camisas negras, campeão da campanha histórica de 1923 - cuja saga também está sendo retratada em paralelo pelo site SempreVasco no Blog do Bacchi - que retrata o rompimento de todos os paradigmas sociais e esportivos da época e alimentou a epopeia vascaína para a construção do então maior estádio do continente; bem como de um dos maiores vascaínos que o Vasco já teve como dirigente, José Ribeiro de Paiva, o Almirante.

   A reportagem foi publicada pela Revista Placar de abril de 1977, que abaixo transcrevemos com a inclusão de algumas fotos originais da matéria e de nosso acervo:


"São Januário faz 50 anos. Meio século de lutas para que o pobre e o negro engrandecessem o futebol brasileiro. 


O TEMPLO DO POVO

O estádio com sua bela fachada colonial ao tempo de sua inauguração 

 
   A festa é nessa quarta-feira, com o Vasco enfrentando o Santos como há cinco décadas, pois naquele tempo nenhum clube carioca merecia inaugurar o estádio construído com lágrimas e suor daquela gente discriminada pela cor, pela nacionalidade ou pela posição social. E de portões abertos, porque a festa é do povo.

   - Era uma coisa horrível. O mínimo que nos chamavam era de galego. Durante o jogo inteiro, os torcedores ficavam a nos ridicularizar, imitando voz de português e gritando "cadê os tamancos? Cadê os tamancos?". No dia da nossa estréia na primeira divisão, contra o Andaraí, no campo do Botafogo, a hostilidade era tanta que nosso contramédio Bolão, não agüentando de raiva, chegou a propor isto: "Temos que dar com a cabeça na baliza, botar o coração pela boca, mas não podemos perder esse jogo". E realmente não perdemos: empatamos de 1 a 1. No jogo seguinte, vencemos o América por 2 a 1.

Pascoal Cinelli, campeão de 1923


   Na pequena casa de sala, quarto e cozinha de uma vilazinha no subúrbio carioca de Maria da Graça, Pascoal Cinelli faz esforços para se lembrar de um ou outro detalhe.


Scratch vascaíno na estréia contra o "Andarahy" em 1923


   Surpreende-se quando não consegue ("Meu Deus, que memória!"), mas de modo geral recorda das coisas com nitidez: fatos e pessoas vão recobrando vida, parecem movimentar-se no álbum de fotografias que ele vai repassando com emoção, mas sem tristeza. É um profundo mergulho no passado: tudo isso ocorreu há 60, 50 anos. Pascoal, 77 anos, é um dos remanescentes do time que deu ao Vasco o primeiro título de campeão carioca, em 1923. E revê o time inteirinho: Nélson, Leitão e Mingote; Brilhante, Bolão e Artur; ele. Torterolli, Arlindo, Ceci e Negrito.

   - Eles ficaram danados com a nossa vitória. Foi uma revolução. Uma revolução mesmo. Pela primeira vez um clube ousava utilizar jogadores negros num time da primeira divisão e, mais que isso, ganhar o campeonato contra os brancos do Fluminense, do Flamengo, do América, do Botafogo. Jogador negro o América já possuía, como o mulato Manteiga, mas sem essa audácia de ser campeão. Esse Vasco da Gama, além do mais, já se mostrara insolente na segunda divisão, ao conquistar o título de campeão de 1922 com os mesmos negros, mulatos e brancos de origem social pouco recomendável.

   Como Pascoal: se soubessem que ele era filho de um italiano que vendia peixe no mercado municipal, dificilmente lhe seria permitido jogar num clube da primeira divisão.

   - Olha, eu nunca pensei em jogar futebol pra valer. Eu batia minha bola num clube sem expressão, o Municipal, quando um sócio do América, Álvaro Damião, me levou para treinar lá. Depois andei treinando pelo São Cristóvão, ganhei 2 mil réis só para isso. Resolvi então trocar tudo em vinténs e cheguei em casa com o bolso cheio de moedinhas: meu pai tomou um susto, quis saber de onde vinha aquele dinheiro, temendo que eu o tivesse afanado de alguém. Precisei levar o Álvaro Damião lá, para ele confirmar a história.

   O namoro de Pascoal com o futebol coincidia com o interesse do Vasco em montar uma equipe mais poderosa. Pelos subúrbios e bairros, como a Saúde, então ocupada por vários campos de pelada, o Vasco já havia encontrado alguns jogadores extraordinários; o goleiro Jaguaré e o zagueiro Espanhol vieram do Pereira Passos, clube sem qualquer renome. Diante de tanta insistência de Pascoal Pontes, um diretor do Vasco que era também o maior jogador de bilhar da época, o jovem Pascoal Cinelli resolveu finalmente ceder. às 5 horas da manhã de um sábado para domingo, fechou o bar que mantinha num bloco carnavalesco da Saúde, o Magnólia, estirou a bandeira do clube no chão e se deitou. Às 6, nem havia ferrado no sono. Pascoal Pontes foi buscá-lo. Às 11 seria a estréia, num jogo Vasco x Escrete da Marinha, no campo do Flamengo.

   - Eu acabei fazendo o gol da vitória do Vasco por 1 a 0 e nunca mais saí do time, mas a verdade é que entrei por causa de um ardil do seu José Ribeiro de Paiva, tesoureiro do vasco. O ponta-direita titular era o Fernandes, mas o seu Paiva tinha ouvido falar que eu era "um garoto espetacular na ponta" e resolveu forçar a minha escalação. Ele chamou o Fernandes, mostrou uma nota de 20 mil-reís e perguntou: "Fernandes, se eu te der esta nota você fica com dor de cabeça e pede para ser dispensado?". Ao ver o dinheiro, Fernandes não vacilou: "Ai, seu Paiva, estou com uma dor de cabeça que não agüento, estou muito ruim". Depois disso, o Fernandes sumiu. Nunca mais dei chance a ele.

   Com Jaguaré, Espanhol, Pascoal e outros jogadores de origem obscura, o Vasco derrotou todos os grandes, à exceção de um, o Flamengo, que no segundo turno passou a encarnar as esperanças de todos os integrantes da Liga Metropolitana de Desportos Terrestres. Nunca o estádio do Fluminense havia acolhido tanta gente: já na preliminar, a polícia mandou fechar os portões, porque não cabia mais ninguém na geral, na arquibancada, na pista. Todos unidos contra o Vasco, cujos torcedores, além de suportar os gritos de mofa e hostilidade ("Entra, basco, que meu marido é sócio"), são agredidos a golpe de pás de remo embrulhadas em jornal, para camuflá-las, pelos torcedores inimigos. O Flamengo toma a dianteira de 2 a 0 no primeiro tempo, mas o Vasco começa reagindo, diminuindo a diferença. O Flamengo aumenta para 3 a 1, o Vasco volta a diminuir, faz o gol de empate, mas o juiz carlito Rocha, escolhido a dedo pela liga, por homem do Botafogo, decide que a bola não entrou.

   Uma festa salvagem, com passeata e carnaval pela cidade, bombardeio de fogos contra a Cervejaria Vitória, reduto dos portugueses, dá prosseguimento aos conflitos que espocaram no estádio durante todo o jogo. Alta madrugada, um tamanco de dois metros e meio de altura é pendurado na sede do Vasco na rua Santa Luzia, perto da praia. Ao lado, é posta uma coroa de flores. Na praça Paris, o gigantesco monumento a Pedro Álvares Cabral é ornamentado com tamancos e résteas de cebola.



A nova liga

   Para a Liga, não basta transformar o Flamengo em partido dos brasileiros, contra o partido dos portugueses, o Vasco. É preciso mais contra esse time que recorre a negros e subverte as regras dominantes no futebol. Mario Polo, dirigente do Fluminense, encontra uma solução jurídica: cria-se uma nova liga e exige-se que os integrantes da primeira divisão tenham outros esportes além do futebol: atletismo, tênis, basquete. O Vasco, egresso há pouco da segunda divisão, não tem nada disso. E terá de retornar à origem ao lado do Mangueira, do Americano, de outros clubes onde a presença de negros não seja ofensiva.

   Sem condições de expor claramente o verdadeiro motivo de seu veto à ascensão do Vasco da Gama, os grandes clubes - Fluminense, Flamengo, Botafogo, América e Bangu, este então com status de grande porque estivera muito ligado ao aparecimento do futebol no Rio - encontram outra forma sinuosa de reduzir o poderio com que surte o novo adversário. O Vasco seria marginalizado, não porque abrigasse negros ou mulatos em sua equipe, mas porque seus jogadores são apontados como não-amadores. Isso é, obtêm alguma forma de remuneração no futebol. Em suma: o Vasco atentava contra a suposta pureza do amadorismo.


Falso Amadorismo

   Pascoal confessa que na verdade o amadorismo então praticado não era tão olímpico e desinteressado quanto alegavam muitos dos dirigentes do futebol. Embora não recebessem salários, os jogadores eram gratificados por vitória, e os prêmios variavam de valor segundo a importância do jogo ou do adversário. Dessa prática adviria a denominação "bicho" hoje incorporada às instituições do futebol: se a nota do prêmio era de 5 mil-réis, dizia-se que era "um cachorro"; se 10 mil-réis, "um coelho". Para não se falar em dinheiro e pagamento, usavam-se referências símbolos extraídos do jogo do bicho, já então muito popular. Falava-se de um galo para iludir a um prêmio de 50 mil-réis, uma vaca de uma perna, 100 mil-réis, de duas pernas, 200 mil-réis.

   - Eu me lembro de que uma vez ganhei um bicho de 200 mil-réis, o suficiente para dar entrada numa casa - conta Pascoal, que dá uma idéia do valor desse prêmio; um quilo de batata custava, naqueles bons idos de 1923, a bagatela de 200 réis.

   No caso do Vasco, a Liga considerava que bastaria provar que seus jogadores não trabalhavam para impugnar a presença de inúmeros craques da equipe campeã. Se não trabalham e conseguem sobreviver, é porque recebem dinheiro de clube. Uma comissão de sindicância se incumbia de apurar, até mesmo com inspeções um locais de trabalho, se os jogadores exerciam uma atividade regular. Compõem-na homens declaradamente ligados a clubes: Reis carneiro, do Fluminense; Diocesano Ferreira Gomes, o Dão do Flamengo; e Arnaldo de Paulo Freitas, do América. Da obrigação de trabalhar estão isento apenas os estudantes; estes são naturalmente filhos de boas famílias, têm seu lugar garantido. Mas os jogadores do Vasco trabalhavam. Uns de verdade, como Pascoal, que se lembra do seu emprego à época, como vendedor de uma fábrica de móveis na rua Senador Eusébio, ou como Torterolli e Bolão, que trabalhavam na Singer. Outros, apenas para atender à exigência da Liga. Não faltavam membros da colônia portuguesa que ofereciam emprego a jogadores do Vasco da Gama ou que atestavam, só para constar, que algum deles trabalhava em sua empresa. E o emprego não podia ser daqueles então considerados como subalternos: o de soldado ou marinheiro, de estivador, nem de garçom, de barbeiro, de chofer, profissões em que se pudesse receber gorjetas.

   Contra o Vasco, a comissão de sindicância decide ir muito além: ao lado das inspeções nas firmas dadas como local de trabalho dos jogadores, passa a exigir que estes preencham com o próprio punho minuciosa ficha de registro. Até então, uma das formas de assegurar que o futebol fosse extremamente seletivo era a exigência de que eles assinassem, a súmula, o que significava a preservação do futebol como esporte das elites, pois os rapazes dos subúrbios, e sobretudo os de origem negra, geralmente eram analfabetos e não poderiam atender a esse requisito elementar.

   "A papelada de inscrição tornou-se quase um exame de primeiras letras. Uma porção de perguntas, nome por extenso, filiação, nacionalidade, naturalidade, dia em que nasceu, onde trabalhou, onde estudava, etc., etc." - conta Mario Filho em O Negro no Futebol Brasileiro, revelando que a discriminação dirigida ao Vasco ficou evidente no caso de um jogador, Leitão. Conta Mario:

   "Quando Leitão era do Bangu, a Liga não se incomodou com ele. Bastou ele ir para o Vasco, teve de assinar a papeleta de inscrição na frente de Célio de Barros, então presidente da Liga Metropolitana. Célio de Barros, não tirando os olhos de cima de Leitão. Leitão, suando frio, parecia que não ia acabar nunca de encher a papelada. E sabia assinar o nome, sabia rabiscar as suas coisinhas".

   As discriminações culminaram com o isolamento do vasco, através da criação da nova Liga, a Associação Metropolitana de Esportes Atléticos (AMEA), em que os cinco grandes estabeleceram as condições para o ingresso do Vasco: além da eliminação de 12 jogadores, exigiam que o Vasco tivesse um estádio à altura, como o Fluminense, como o Flamengo, com seu campo na Rua Paissandu, como qualquer outro dos grandes. Para o Vasco essa exigência era incontornável.

   - Nesse tempo - diz José Ribeiro Paiva, o velho Paiva - o campo do Vasco era na rua Morais e Silva, perto da praça da Bandeira, muito distante da nossa sede de hoje, São Januário. E não podia mesmo ser classificado como estádio: era um campo muito modesto, pobre, com uma arquibancada de madeira muito vagabunda. Não tínhamos condições de atender à exigência da nova liga.

José Ribeiro de Paiva, o Almirante


Posição digna

   Longe de se abater, O Vasco reagiu com altivez, à violência de que era vítima. Assim que os jornais divulgaram a resolução adotada pela AMEA na véspera, o presidente do Vasco, o engenheiro José Augusto Prestes, dirigiu um ofício ao presidente da liga, o milionário Arnaldo Guinle, patrono do Fluminense, declarando que repelia as imposições e que por isso recusava participar da nova liga.

   Até hoje o texto dessa declaração é motivo de orgulho dos vascaínos ciosos da tradição de dignidade do clube. Em sua mesa de diretor da Almeida Comércio e Indústria de Ferro S. A., onde trabalha desde que se entende como gente, o velho Paiva tem sempre disponível uma cópia desse documento de protesto e denúncia: 

   "As resoluções divulgadas hoje pela imprensa, tomadas em reunião de ontem pelos altos poderes da associação a que V. Exa. tão dignamente preside, colocam o Club de Regatas Vasco da Gama numa situação de tal inferioridade que absolutamente não pode ser justificada nem pela deficiência do nosso campo, nem pela simplicidade da nossa sede, nem pela condição modesta de grande número dos nossos associados.

   Os privilégios concedidos aos cinco clubes fundadores da AMEA e a forma por que será exercido o direito de discussão e voto, e feitas as futuras classificações, obrigam-nos a lavrar o nosso protesto contra as citadas resoluções.

   Quanto à condições de eliminarmos doze (12) dos nossos jogadores das nossas equipes, resolve por unanimidade a diretoria do Club de Regatas Vasco da Gama não dever aceitar, por não se conformar com o processo por que foi feita a investigação das posições sociais desses nossos consórcios, investigações levadas a tribunal onde não tiveram nem representação nem defesa.

   Estamos certos de que V. Exa., será o primeiro a reconhecer que seria um ato pouco digno da nossa parte sacrificar ao desejo de filiar-se à AMEA alguns dos que lutaram para que tivéssemos entra outras vitórias a do Campeonato de Futebol da Cidade do Rio de Janeiro de 1923.

   São esses doze jogadores jovens quase todos brasileiros no começo de sua carreira, e o ato público que pode macular nunca será praticado com a solidariedade dos que dirigem a casa que os acolheu nem sob o pavilhão que eles com tanta galhardia cobriram de glórias.

   Nestes termos, sentimos ter de comunicar a V. Exa. que desistimos de fazer parte da AMEA.

   Queira V. Exa. aceitar os protestos da consideração e da estima de quem tem a honra de subscrever de V. Exa. AT. Vnr. Obrigado. (a) Dr. José Augusto Prestes, presidente".

   - Essa carta - lembra seu Paiva com impressionante exatidão de dados - despertou os brios do Vasco da Gama. Foi o rastilho que empolgou o corpo social e todos quantos simpatizavam com o clube, que passaram a pedir filiação como sócios. Decidimos então construir nosso estádio, como uma resposta à indignidade que atingia o Vasco. E não faríamos um estádio qualquer, mas o melhor da cidade.


A grande campanha

   A conquista do campeonato de 1923 havia despertado o interesse do Vasco pelo futebol, pois até então o remo era o primeiro esporte do clube. E os vascaínos não pensavam em desenvolver o setor de futebol, por que as despesas com o setor de remo absorviam muitos recursos do clube, pela necessidade de manutenção de barcos, alimentação dos remadores, pagamento de prêmios aos atletas. O futebol, além disso, era uma inovação recente no clube, resultante de sua fusão com outro clube, o Lusitânia, e que chegara a entusiasmar, pois logo em sua estréia na nova modalidade o Vasco fora derrotado por 10 a 0 pelo Paladino, equipe sem maior expressão. Além do título de campeão, havia agora outro fator de mobilização dos vascaínos no setor futebol: a sua exclusão da AMEA pelos cinco grandes.

   Com seus amigos e torcedores sensibilizados pelo gesto altivo do presidente José Augusto Prestes, o clube decidiu então lançar um empréstimo interno para a construção do estádio, através da venda de títulos de 100 mil-réis pagáveis em 20 prestações. Mesmo com a receptividade encontrada pelo apelo da diretoria do clube, essas doações ("Era um emprestado-dado", diz Paiva) eram insuficientes para a obra, orçada em 2 mil contos de réis, sem contar os 665 contos e 895 mil-réis aplicados na compra do terreno, uma área de 65.445 m2 de uma chácara que pertencera à marquesa de Santos.


Fartas doações

   - Tivemos então de apelar para grandes doadores, entre os quais se destacam o industrial Zeferino de Oliveira, dono do Moinho da Luz e homem muito generoso, e a Cervejaria Brahma, que é a instituição que ao longo do tempo mais tem auxiliado o Vasco. Além de doar 25 contos de réis para a construção do estádio, a Brahma montou os bares de nossa sede e depois colaborou na construção da sede náutica do Vasco e do nosso ginásio de esportes - conta Paiva, que assumiu o comando da campanha financeira da obra, como primeiro-tesoureiro do clube.

   Como gestor dos dinheiros do clube, Paiva teve de fazer milagres, pois a obra consumia recursos além dos previstos. Lançada em fins de 1925 sob o nome de Campanha dos Dez Mil, a coleta de recursos se estendeu de 6 de janeiro a 29 de dezembro de 1926, com grande ressonância entre os simpatizantes vascaínos (só nesse ano o clube ganhou mais de 7 mil - 7189 - associados), mas mesmo assim era preciso negociar com bancos para antecipar a arrecadação de fundos destinados ao pagamento das obras. Houve um momento em que o Vasco tinha de pagar ao banco Holandês uma duplicata de 370 contos e contava apenas com 5 contos em caixa. Paiva conseguiu encontrar um comerciante que emprestou 1.000 contos ao clube, mas com a condição de que o Vasco pagasse a dívida em dólares.

   - Meu patrão aqui na firma, Antônio de Almeida Pinho, é quem avalizava as promissórias emitidas pelo clube. Ele não gostava de reformar os títulos, porque os juros oneravam demais o Vasco, aumentando em muito a dívida principal. Mas eu sempre encontrava um argumento que pesava: a dívida que contrariamos nada representava em relação ao patrimônio que o Vasco estava construindo.

   Durante a campanha, Paiva recebeu o apelido de Almirante, que mais tarde se estenderia ao próprio clube. Como tesoureiro, ele era assediado por todo tipo de propostas de colaboração, muitas das quais representavam mais vantagem para o clube. Paiva ouvia a todos com paciência, mas invariavelmente terminava o diálogo com as mesmas palavras toda vez que a proposta se revelava inconveniente: "Eu por mim fazia, mas o Almirante não quer" - dizia ele, insinuando que o almirante Vasco da Gama não gostaria de um negócio de tal natureza.

   O que onerava especialmente a obra era a monumentalidade do estádio que o Vasco planejara. Entre o lançamento da pedra fundamental, a 6 de junho de 1926, pelo prefeito do Distrito Federal, Alaor Prata, e a inauguração do estádio, menos de um ano depois, a 21 de abril de 1927, pelo presidente Washington Luiz, o Vasco tinha não apenas um campo de futebol capaz de silenciar seus adversários no futebol carioca, mas o maior e mais confortável estádio da América do Sul.

Lançamento da pedra fundamental do Stadium Vasco da Gama


   Com capacidade inicial de 30 mil pessoas e área construída de 11.000 m2, custara 1.200 contos de réis, sem contar as despesas com ferro (252 toneladas) e cimento (6.600 barris), fornecidos pelo clube. E do ponto de vista técnico a construção espantava pela ousadia: a sua marquise suspensa constituía uma inovação que inspirava temores quanto à segurança do estádio.

   Do alto dos seus 85 anos, a maior parte de devotamento sem ostentação ao Vasco da Gama (ele não teve filhos e enviuvou há 20 anos, após longa enfermidade da mulher), seu Paiva fica com os olhos cheios d'água e se engasga de emoção quando relembra toda a sua saga, que ainda hoje o espanta:

   - Foi um trabalho fantástico.

   O mesmo Santos Futebol Clube que joga esta semana contra o Vasco da Gama (quarta-feira à noite, com portões abertos), comemorando os 50 anos da inauguração do estádio, teve também o privilégio de fazer o primeiro jogo de futebol na nova praça de esportes. O Santos era então uma das maiores equipes brasileiras, com um atacante extraordinário, o centroavante Feitiço, e venceu o Vasco com facilidade: 5 a 3. Sua equipe reunião Tufy, Bilu e Davi; Alfredo, Júlio e Hugo; O mar, Camarão, Feitiço, Araquém e Evangelista, enquanto o Vasco alinhava alguns campeões de 1923: Nélson, Espanhol e Itália; Nesi, Claudionor e Badu; Pascoal, Torterolli, Galego, Russinho e Negrito.

   À festa estavam presentes o presidente da República, Washington Luiz, ministros de Estado, o presidente da CBD, Oscar Costa, que deu o ponta-pé inicial da partida, e o major J. M. Sarmento de Beires, famoso aviador português, que cortou a fita simbólica. Beires chegava coberto por uma glória só tributada aos aviadores portugueses Gago Coutinho e Sacadura Cabral, que fizeram a primeira viagem de hidroavião entre Portugal e Brasil, e dava à cerimônia um toque heróico, compatível com a dimensão atribuída pelos vascaínos à campanha financeira do estádio e sua construção.

   Apesar da derrota, naquela tarde o Vasco começava a palmilhar um caminho de grandeza que refletiria no próprio desenvolvimento do futebol brasileiro. Dois anos depois, em 1929, ao fechar a curva de arquibancadas atrás de um dos gols, ele trazia para a festa de inauguração a equipe do Wanderers (Vasco 1 a 0, gol olímpico do ponta-esquerda Santana), abrindo caminho para o intercâmbio de clubes brasileiros. Além de colecionar títulos (campeão carioca de 29, 34, 36, 45, 47 e 49, campeão dos campeões da América do Sul em 1948), passou a contar com equipes que constituíram a base da Seleção Brasileira, numa proporção não igualada nem mesmo pelo Santos de Pelé.

   Ao longo de 20 anos, com o fastigio do Maracanã, a partir de 1950, os próprios vascaínos se esqueceram de que sua grandeza tinha raízes no Estádio de São Januário. A abril de 1972, porém, o Vasco reabria seu estádio de bela fachada colonial, e para marcar essa reinauguração fazia a maior transação do futebol brasileiro na época: a compra de Tostão por 4 milhões de cruzeiros. Não importo que Tostão logo tenha deixado o clube e o próprio futebol; naquele momento, o vasco de hoje procurava justificar a herança de audácia do Vasco descrito no célebre ofício n.º 261, de 7 de abril de 1924, do engenheiro José Augusto Prestes. O Vasco que em defesa de 12 moços proclamava: "O ato público que os pode macular nunca será praticado com a solidariedade dos que dirigem a casa que os acolheu nem sob o pavilhão que ele com tanta galhardia cobriram de glórias."!
Maurício Azêdo"

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Vascainidades:

- No dia 10 de setembro de 1926, o Diário Oficial da União, através da Diretoria da Receita Pública (então receita federal), publicava o indeferimento ao requerimento do Club de Regatas Vasco da Gama para isenção de direitos de importação de cimento para a construção de seu stadium, comprovando o fato sempre alardeado pelos vascaínos: de que até o governo Washington Luiz havia impedido a importação do cimento belga, quando o mesmo fora autorizado para a construção das arquibancadas do Jockey Club, numa clara aluzão ao preconceito com a colônia e ao próprio Vasco.

- No dia 21 de abril de 1977, o Vasco derrotou a equipe do Santos por 3 a 0, na comemoração do cinqüentenário do seu estádio, com portões abertos (como na inauguração em 1927).


*texto originalmente publicado em 20/04/2013 - 08h33m no semprevasco.com

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