Em frente da sua primeira sede, também funcionou a primeira escolinha de remo do Vasco!
Há muito se pergunta: aonde se localizava com exatidão a primeira sede do Vasco, instalada no Largo da Imperatriz. Aqui tentaremos resgatar para a memória vascaína a pequena história por trás da história.
Os Primeiros Passos do Vasco para a Glória
Os Primeiros Passos do Vasco para a Glória
Henrique, Luiz, José e Manoel. Todos do comércio do centro do Rio, trabalhavam mais de 14 horas por dia. Em fins do século XIX o comércio do Distrito Federal funcionava até as 21 horas ou mais, havendo inclusive plantões aos domingos para os funcionários que não folgassem. Caso folgassem, ainda assim teriam somente o tempo da manhã de domingo, antes do almoço de preleção dos empregados com o patrão. Neste dia lhes era possível exercitarem-se com um barco a remo, a Iracema, alugado ao Grupo de Regatas Gragoatá, na distante Niterói. Das dificuldades da lida desportiva, em meio a remadas na baía de Guanabara, é que surgiu o sonho da criação de um clube de regatas na Saúde.
Decerto a motivação dos fundadores era a prática do remo. No entanto, o chamado "rowing" ou "yatching" era dominantemente praticado pelos clubs de elite e por estrangeiros, que não permitiriam que simples comerciários "sem berço" lhes roubassem a cena.
A decisão do fundador Henrique M. Ferreira Monteiro de convidar os irmãos Couto(1) a fim de que participassem do novo club de regatas não foi sem finalidade. Trariam eles o suporte social e financeiro para a viabilização do Vasco.
Anúncio da empresa de Couto Junior publicado em diversos jornais da época
O empresário Francisco Gonçalves do Couto Junior, em sociedade com o Conde de Santa Marinha, atuavam no ramo da "serraria a vapor" (com instalações na Rua Barão de São Félix, n.º 25 e nos trapiches de n.os 106 e 112 da Rua da Saúde)(2).
Ao contrário do que se diz e supõe, Couto Junior não era brasileiro e sim português. Nessa época, por conta também do anti-lusitanismo, advindo do jacobinismo praticado desde os tempos do império, fizeram com que os irmãos Couto ficassem motivados pela empreitada de um novo club de regatas, sob o signo da Cruz de Cristo.
Antes mesmo de tomar posse como primeiro presidente do Club de Regatas Vasco da Gama, Francisco Gonçalves do Couto Junior providenciou, nas proximidades de seu negócio, a locação do prédio onde se instalaria a primeira sede do club, à rua da Saúde, n.º 127, defronte ao Largo da Imperatriz, vindo a funcionar na mesma data em que tomou posse a primeira diretoria, à 28 de agosto de 1898(3).
Gazeta de Notícias, 30/08/1898
Nesse local ficaria o Vasco instalado provisoriamente, até que fosse decidida a localização de sua futura sede própria, onde passaria a funcionar a garagem de barcos.
A Cidade do Rio, 30/08/1898
A sede da rua da Saúde, n.º 127 no Largo da Imperatriz(4), além estar a metros de distância dos negócios de Couto Junior, ficava bem próxima do acesso ao mar pelo Cais da Imperatriz, recentemente redescoberto pelas obras do Porto Maravilha e tornado monumento histórico pela prefeitura.
A localização desta sede era mais que apropriada para o momento da fundação. Iniciava-se ali a sina de um club que lutaria anos a fio na superação da intolerância e do preconceito incrustados na cultura aristocrática e elitista da alta sociedade carioca da então Capital Federal.
Nas palavras do Rochinha(5), "nesse sobrado espaçoso e confortável organizou o Vasco os seus serviços de secretaria, tesouraria e outros mais necessários à vida desportiva e social, pois era comum haver um bate-papo noturno". E ali os mais de 100 novos sócios, na sua maioria moradores da Saúde, Gamboa e Santo Cristo, fizeram germinar os mais altos princípios de vascainidade: dignidade, força, coragem, e superação.
O Primeiro Estatuto
Ainda na sessão de posse da 1.ª diretoria eleita, ocorrida na Estudantina Arcas, o Dr. Henrique Lagden (2.º tesoureiro, médico e intendente da Câmara Municipal)(6), propôs a criação de uma comissão para a confecção do estatuto e do regimento interno, sendo eleitos para tal o fundador José Lopes de Freitas (Zé da Praia), e os sócios Virgilio Antunes e A. Gama.
Encerrados os trabalhos da comissão, a 7 de setembro de 1898, convidou-se os associados a reunirem-se em assembleia geral para a discussão dos estatutos, designada para o sábado, 10 de setembro, às 7 horas da noite, conforme edital publicado no mesmo dia pelo matutino "O Paiz."
Foi José Lopes de Freitas o formulador da principal proposta, que integra até hoje, de modo irreversível, todas as alterações estatutárias do Vasco:
O mesmo "O Paiz" afirma que aprovação do estatuto se deu sob aclamação de "um aluvião de palmas".
"PROPOSTA: O CLUB DE REGATAS VASCO DA GAMA POR MOTIVO
NENHUM MUDARÁ O NOME E AS CORES QUE ADOTOU".(5)
O mesmo "O Paiz" afirma que aprovação do estatuto se deu sob aclamação de "um aluvião de palmas".
Na mesma reunião, após a aprovação do estatuto, foram abertos os debates em assuntos gerais para definição da localização da futura garagem de barcos. Os irmãos Couto assumem o compromisso da construção do barracão para guarda das embarcações e seus utensílios. Discutido o local onde ela deveria ser erguida, por unanimidade de votos decidiu a assembleia pela Praia Formosa, na antiga Ilha das Moças.
A Primeira Escolinha de Remo
No acesso ao Cais da Imperatriz foi criada a primeira escolinha de remo do Vasco
Em frente à primeira sede, organizou-se também a primeira escolinha de remo do Vasco, sob direção dos dois Freitas (José Lopes de Freitas, expert do rowing, e João Candido de Freitas, diretor de regatas).
Em sua obra(5), Rochinha descreve a atividade:
"Todas as noites, das 19 às 22 horas, davam "aulas práticas no "Vagaroso", bote alugado e armado a quatro remos com palamenta, e na "Iara", cedido por João Amaral, barquito de quatro metros de comprimento, armado com quatro remos de voga com pretensões a baleeira.
A garagem era um limitado trecho de praia ao lado do cais (da Imperatriz) de desembarque, uma corrente de ferro a prender os barcos com cadeado para evitar que as marés cheias e também as mãos sorrateiras e criminosas que os pretendessem levar para outros embarcadouros.
Aos treinos noturnos, compareciam muitos sócios. Em regra os aspirantes e "campeões de remo" eram verdadeiros neófitos mas atentos e animosos ouviam com paciência e empenho as explicações sobre o material desportivo e a técnica: as forquetas, o castelo, o cair à ré, o remar avante, o bombordo, o boreste...".
Já o jornal O Paiz ainda descreveu mais detalhes:
"O numero de socios começou então a augmentar consideravelmente. Lopes de Freitas foi nomeado pela directoria instructor de remo; as instrucções eram ministradas todas as noites numa embarcação a quatro remos, a que lhes deram o nome de "Escola".
O trajecto preferido pelo habil instructor era da ilha da Pombeba ao Arsenal de Marinha, sendo este feito duas, tres e muitas vezes quatro por dia, era o adestramento dos futuros luctadores"(7).
O Prédio da Primeira Sede do Vasco
Como afirmaram diversos jornais da época, a sede tinha por finalidade a provisoriedade. Os jornais "Cidade do Rio" e a "Gazeta de Notícias" destacaram a instalação do Vasco em sua sede provisória nas respectivas edições de 30/08/1898.
Mesmo assim, foi ali que o Vasco traçou seu futuro, sendo visitado por seus co-imãos (Botafogo, Natação e Regatas, Flamengo e Boqueirão do Passeio) a 4 de setembro de 1898 (domingo), cujas guarnições, devidamente uniformizadas, realizaram a principal saudação náutica, encimando os remos ao alto, antes de desembarcarem no Cais da Imperatriz (O Paiz, quarta-feira - 07/09/1898) e se dirigirem à sede do club, lugar em que se confraternizaram, sob os auspícios de seu presidente, quando foi servido um lunch e brindes de vinho do porto.
O Paiz, quarta-feira - 7 de setembro de 1898
Nela, providenciou a diretoria a aquisição de diversas embarcações, como a Zóca, que trouxe em solenidade a bandeira, a flâmula, o gorro, seu símbolo máximo, representado pelo escudo da Cruz de Cristo, designado desde então por toda imprensa genericamente como Cruz de Malta.
Por volta do mês de novembro do ano da fundação, o Vasco já se encontrava instalado em sua sede própria na Ilha das Moças.
Não se tem notícias se o club continuou utilizando o sobrado da Rua da Saúde, n.º 127 tão somente até a construção da nova garagem na Ilha das Moças ou se prosseguiu com a locação até o momento da primeira cisão em meados de 1899.
Do histórico prédio da primeira sede do Vasco, que hoje corresponde ao n.º 167 da Rua Sacadura Cabral, somente persiste de pé a sua fachada, esta em péssimo estado de conservação.
Em destaque, à esquerda, o prédio da Rua da Saúde, n.º127 - atual Rua Sacadura Cabral. n.º 167.
Somente a fachada do predio permanece de pé
Somente a fachada do predio permanece de pé
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Notas do Blog:
(1) Eram 5 os irmãos Couto: Francisco Gonçalves do Couto Junior, Antonio Gonçalves do Couto Sobrinho, Adolpho Gonçalves do Couto, Alfredo Gonçalves do Couto e José Gonçalves do Couto, filhos de Francisco Gonçalves do Couto que em 1891 já era dono de um comércio de secos e molhados na Rua Voluntários da Pátria, n.º 72 (nas proximidades do atual n.º 46 e do acesso da estação Botafogo do Metrô).
(2) Os trapiches de Couto Junior localizavam-se onde hoje existe o complexo do Hospital dos Servidores Públicos do Estado, aproximadamente defronte aos ns. 203 e 205 da Rua Sacadura Cabral.
(3) Vide nosso blog em A PRIMEIRA DIRETORIA DO VASCO - Há exatos 115 anos, tomava posse sua primeira diretoria, instalando-se o club na sua primeira sede.
(4) Atual Praça Jornal do Comércio, no cruzamento da Rua Sacadura Cabral com a Av. Barão de Tefé, ao lado do complexo do Hospital dos Servidores do Estado.
(5) José da Silva Rocha, Club de Regatas Vasco da Gama - Histórico: 1898-1923, ed. gráfica Olímpica Editora-Rio - 1975, pp.16 e 17. *Rochinha indica que a visita dos clubes náuticos à nova sede se deu no dia 10 de setembro. No entanto a fonte remota registrada pela edição de 7 de setembro de 1898 do jornal "O Paiz" (p. 3) retifica essa data para domingo, 4 de setembro de 1898.
(6) Dr. Henrique Lagden, médico atuante nos bairros portuários. Foi convidado por Henrique Monteiro a participar da fundação do Vasco, oportunidade em que lhe foi pedida a indicação dos seus pacientes para virem se associar ao club na assembleia de instalação. Foi um dos principais captadores de sócios, resultando, já na posse da 1.ª diretoria, no comparecimento de mais de 100 novos associados.
(7) Grafia original, Vide a matéria fixa do SempreVasco: Especial em comemoração ao vigésimo aniversário do Gigante da Colina
(8) Em nossas pesquisas cotejamos as seguintes fontes de consulta: (a) Biblioteca Nacional; (b) Plan of the City of Rio de Janeiro - Edward Gotto -1876; (c) Nova Numeração dos Prédios da Cidade do Rio de Janeiro - J. C. Cavalcanti - vol. 1 - fac simile da ed. original revisada de 1878, Câmara Municipal - Typographia da Gazeta de Notícias - Coleção Memória do Rio 6 - 1979; e (d) croqui do acervo de plantas e iconografia do Arquivo Público da Cidade do Rio de Janeiro. *O conjunto de 4 sobrados da Rua Sacadura Cabral (antiga da Saúde), em frente à Praça Jornal do Comércio (originalmente Largo da Imperatriz, antiga Praça Municipal), tinha numeração sobreposta por letras pela ordem A, B, C e D da antiga Praça Municipal, assim registrados por Edward Gotto. Na obra de J. C. Cavalcanti, encarregado da revisão, este procedeu a supressão da designação por letras para a Praça Municipal e integrou os imóveis à Rua da Saúde, indicando para o sobrado de letra C o n.º 127. Já o croqui constante do acervo do Arquivo Público indica a posição dos 4 sobrados por volta de 1904, com os mesmos prédios ainda hoje existentes e mais 1 imóvel na esquina da Rua Camerino, na seguinte ordem: n.º 2 (da Rua Camerino, esquina com Rua da Saúde), n.os 123, 125, 127, 129. Da simples comparação do imóvel indicado no referido croqui, temos a identificação do prédio da Rua da Saúde, n.º 127 como sendo o atual imóvel da Rua Sacadura Cabral, n.º 167 - Saúde.
*texto originalmente publicado em 30/09/2013 - 15h15m no semprevasco.com
** Nossos agradecimentos a André Decourt, autor do fotolog "Foi um Rio que Passou", de onde obtivemos a primeira foto que estampa este artigo (http://www.rioquepassou.com.br/2006/06/09/chafariz-da-gamboa)
Essa história é linda.
ResponderExcluiratt,
Marcus Grillo